A comida pode impactar a relação com o mundo, com você e com o outro.
Comemos o mundo que queremos. A forma como o nosso alimento é plantado, colhido, transportado, preparado, armazenado, servido, hierarquizado, compartilhado, descartado, desperdiçado, aproveitado, celebrado, diz sobre o que somos - nós mesmos, nós e o outro, nós e o mundo.
Se o que comemos muda o mundo, como podemos agitar mudanças reais, criativas, inovadoras?
O impacto da comida em nossas vidas
A forma como nos alimentamos mudou mais nos últimos 50 anos do que em todos os anos que lhe antecederam. A tecnologia, a inovação, a ciência, a industrialização e, os combustíveis fósseis, trouxeram uma revolução de paradigmas sobre nossa forma de nos relacionarmos com o alimento e na forma do alimento se relacionar com o mundo. Se pararmos para refletir, comer é muito provavelmente o ato mais íntimo e individual com maiores impactos no mundo e na sociedade.
Todos precisamos comer. E esse ato aparentemente tão simples é, na verdade, a nossa necessidade básica mais disputada e impactante: em quem somos, em como nos relacionamos, nas culturas a que pertencemos e visitamos, até à macroeconomia, decisões e revoltas políticas (sabia que a revolução francesa começou com um protesto contra o aumento do preço do pão?), espiritualidade, crenças, hábitos, vida.
Vamos organizar um pouco a reflexão. Dividimos em 3 esferas o impacto da comida, para podermos entender um pouco como, em todas as fases do sistema alimentar, estamos tecendo quem somos e como somos no mundo.
Eu e o mundo
O setor alimentar é o maior responsável pelas emissões de gases de efeito de estufa do planeta. Sim, se somarmos as emissões diretas e indiretas, não tem nenhum outro setor mais responsável pelo tão famigerado aquecimento global. No Brasil então, que tem uma extensão muito grande de área destinada à produção de gado (é o segundo maior produtor do planeta), o setor agropecuário é responsável por 69% do total de emissões de gases poluentes!
A forma de produzir alimento para responder às nossas escolhas de consumo, também é a maior consumidora de água e de terra, chegando a ameaçar a extinção de biomas como o Cerrado. Ao mesmo tempo, já existem sistemas de produção de alimentos que regeneram ecossistemas, produzindo florestas abundantes de alimentos sem veneno, como é o caso da agrofloresta! O que comemos é a ponte mais direta entre eu e o mundo.
Eu e o outro
Escolher com quem dividir nossa comida, que receita usar, que alimento selecionar, qual a hierarquia das refeições, quem cozinha, quem serve e quem é servido, de quem comprar nosso alimento, são algumas decisões que fazemos muitas vezes sem nos apercebermos do tanto que elas dizem sobre quem somos, nossos valores, nossa forma de estar em sociedade e nossas práticas culturais. A comida é a maior rede social do mundo. Vivemos dentro de uma comunidade alimentar, onde tem quem produz, quem cozinha, quem come, quem distribui, quem armazena. Entender os elos dessa cadeia toda, nos ajuda a saber de quem estamos comprando, a quem o nosso alimento está de fato alimentando e como podemos fazer da nossa comida um ato sócio político. Comprar do pequeno produtor? Preferir produtos mais artesanais? Pesquisar sobre a cadeia produtiva e entender se existe algum tipo de exploração ou se estamos perante um comércio justo? O que comemos é a maior ponte entre eu e o outro.
Eu comigo
Quais são minhas prioridades e meus valores quando escolho um alimento em detrimento de outro? O que procuro quando escolho comer? Como porque quero, porque posso, ou porque preciso?
Comer é um ato muito íntimo. Colocar dentro do nosso corpo um alimento significa um ato de profunda responsabilidade. A minha saúde, os nutrientes que necessito e, mais do que isso, o que a minha fome diz sobre mim. Vivemos numa era na qual obesidade, fome, compulsão alimentar, imagem corporal, desejo e espiritualidade estão caminhando de mãos dadas, ao mesmo tempo.
Escolher o que comer é escolher o que quero dizer sobre mim, o que quero aceitar em mim. É sobre enfrentar algumas sombras, é sobre caminhar no sentido do nosso eu mais profundo. Comer pode ser o maior ato meditativo, na escolha do alimento, do tempo, do seu preparo, ou até da sua ausência.
A inovação pela boca
Se sabemos que o que comemos muda o mundo, como podemos então desafiar-nos a repensar soluções de forma criativa e inovadora, que facilitem essas pontes de acontecerem: eu e o mundo, eu e o outro, eu e eu mesma?
Precisamos abrir a mente. Refletir dentro de nós, aprender com o que está colocado, pensar além, repensar tudo, derrubar paradigmas e começar de novo. Precisamos entender onde a língua encontra a boca, questionar por que o garfo existe e por que a panela é desse jeito. Precisamos provocar o inimaginável e o imprevisível, agitar as bases, devorar trocas! Precisamos de ajuda da arte, da inovação, do design, da imaginação!
Precisamos trilhar esse caminho juntos, com alegria, com colaboração, com muito prazer, cientes de que estamos afinal construindo mais do que uma rota, uma rede imensa de alternativas.
Se o que comemos muda o mundo, o que podemos (juntos) fazer com isso?
Fonte: Mônica Guerra, PERSONARE